A náusea nos Negócios da Tap

 



Era uma vez uma senhora chamada Alexandra Reis que, a1/9/2017, foi contratada por meio de um contrato sem termo (ou seja, permanente) pela Administração da TAP, para exercer funções de direção, mais precisamente de“Chief Procurement Officer”, na área de Compras. Seguramente muito prendada, foi um dos quadros da TAP que receberam, por referência ao ano de 2018, um ano de elevados prejuízos da Companhia, um chorudo “prémio de desempenho”.

Em Dezembro de 2020, ainda nos tempos do reinado do Sr. Neeleman, foi nomeada vogal do Conselho de Administração da TAP, por um mandato de 4 anos, assumindo assim um cargo onde só de vencimento-base (isto é, para além de todas as outras mordomias, como carro e despesas de representação) passou a auferir a módica quantia de 25.000€, 14 meses ao ano. E destacou-se desde então pelo empenho em defender e ajudar a implementar todas as medidas contra a generalidade dos trabalhadores da empresa, muito em particular os despedimentos e os cortes salariais (dos outros, é claro…). 

A 5/2/2022, a CEO da TAP anunciou, dentro da empresa e à CMVM, que Alexandra Reis tinha apresentado a sua renúncia ao cargo (figura jurídica que é da iniciativa do próprio e não confere direito a qualquer indemnização), “decidindo encerrar este capítulo da sua vida profissional e abraçar agora novos projetos” e ainda que essa renúncia, “já comunicada ao mercado, produzirá efeitos no dia 28 de fevereiro de 2022” (sic). Para além disto, o relatório de contas da TAP também referiu que a administradora “apresentou, por carta dirigida à Sociedade no dia 4 de Fevereiro de 2022, renúncia ao cargo”.

Mas logo em Junho seguinte, ou seja, cerca de somente 3 meses depois, se percebeu qual era, afinal, o tal “novo projeto”: o mesmo governo de António Costa que a tinha mantido na administração da TAP, e que nada achara digno de estranheza ou de pedido de informações na referida “renúncia”, nomeia a dita senhora (por despacho dos dois ministros da tutela Pedro Nuno Santos e Fernando Medina) para Presidente de outra empresa do mesmíssimo sector empresarial do Estado, a Navegação Aérea de Portugal- NAV Portugal, EPE.

Cerca de 5 meses depois, o mesmíssimo governo de António Costa designa a felizarda senhora protagonista de toda esta história como Secretária de Estado do Tesouro, entidade que tutela, do ponto de vista financeiro, a empresa de onde saíra 9 meses antes! Tudo isto sem que então governantes, dirigentes políticos e, já agora, jornalistas vissem neste autêntico carrossel de cargos qualquer questão digna de registo, e isto mesmo que ainda não se soubesse que, com a dita saída da TAP, Alexandra Reis embolsara meio milhão de euros.

A partir do conhecimento público deste negócio tão milionário quanto eticamente repugnante, assistiu-se então a toda uma série de malabarismos que deveriam fazer os seus autores corarem de vergonha, acaso a tivessem, o que, notoriamente, não é o caso. Assim, a própria senhora procurou envergar as vestes da seriedade afirmando – pasme-se, mas logo sendo muito saudada por isso, desde logo pelo próprio Primeiro-Ministro!?… – que devolveria tudo o que viesse a ser declarado ilegal ter recebido, como se não fosse essa a consequência incontornável de uma declaração de ilicitude… E esquecendo-se “convenientemente” de referir que a sua proposta inicial até fora a de receber um valor muito “parecido” com aqueles com que a TAP pôs na rua centenas de trabalhadores com antiguidades 5 e 6 vezes superiores, ou seja, a módica quantia de quase um milhão e meio de euros…

António Costa logo invocou – “para variar” … – que desconhecia o que se passava e que esperava informações dos ministros da tutela, Pedro Nuno Santos e Fernando Medina. Estes, por seu turno, invocaram também nada saber. Como se a fiscalização da boa ou má gestão da TAP não fosse da sua responsabilidade e como se alguém pudesse acreditar que a saída de uma administradora nomeada pelo governo não suscitasse, pelo menos, um pedido de informações sobre as respetivas circunstâncias. E invocaram que até já tinham pedido esclarecimentos à TAP. 

A CEO da TAP – a autora da supracitada comunicação pública da renúncia – remeteu-se inicialmente ao silêncio, pensando conseguir assim escapar, uma vez mais e com a prestimosa ajuda de sempre do ministro Pedro Nuno Santos, por entre os pingos da chuva. Mas quando a pressão da opinião pública, interior e exterior à Companhia, mais do que justamente não cessou e se tornou muito dificilmente suportável, lá tratou de pôr a SRS- Simons & Rebelo de Sousa, a Sociedade de Advogados que tomou conta das questões jurídico-laborais da empresa (do despedimento coletivo aos despedimentos disciplinares, passando pelos acordos milionários de rescisão com alguns diretores) a produzir uma pseudojustificação jurídica para este escândalo.

A este propósito convirá, todavia, referir que nem o aqui aplicável Estatuto do Gestor Público, nem o Código das Sociedades Comerciais preveem ou admitem denúncia ou demissão “por mútuo acordo”, e muito menos implicando o pagamento de quaisquer compensações. Se o gestor renuncia ou é demitido com justa causa, nada tem a receber, e se sai por força de uma decisão que lhe é imposta e que não tem fundamento, então não há renúncia, mas sim demissão, e ilícita, logo conferindo, aí sim, o direito a receber o valor das remunerações até final do mandato, mas não podendo ser superior ao de 12 meses se for um gestor público.

Ora, a TAP veio dizer, agora e apenas agora (pois até aqui estava tudo no “segredo dos deuses”, ao abrigo de uma muito significativa cláusula de confidencialidade, como se este tipo de cláusulas se pudesse sobrepor às exigências de transparência e de controlo dos dinheiros públicos) que, afinal, terá havido um processo negocial, “da iniciativa da TAP”. E ainda que, dos 500.000€, 107.500€ seriam de férias (ricas férias, portanto…) não gozadas, 56.000€ da cessação do contrato de trabalho como diretora, e “só” os restantes 336.000€ (resultantes de uma “brilhante” negociação que todos deveríamos agradecer) é que seriam da juridicamente infundamentada compensação pelo também juridicamente inadmissível pseudo-mútuo acordo… 

Acresce que a lei determina que se o gestor, no prazo de 12 meses após a cessação do mandato, regressar – como Alexandra Reis regressou ao fim de 3 meses apenas – ao exercício de funções no âmbito do sector público, o montante da indemnização, mesmo quando ela é devida, é sempre reduzido ao valor da diferença, se ela existir, entre o vencimento que tinha e aquele que passou a auferir no novo lugar ou cargo, “devendo ser devolvida a parte da indemnização que eventualmente haja sido paga”. E, todavia, ninguém, a começar pela própria TAP, fala neste “pequeno” pormenor. 

Mas há mais ainda! O valor que a TAP tem de despender com este faraónico acordo é muito superior aos anunciados 500.000€, já que, por um lado, terá de pagar os 23,75% de contribuição patronal para a Segurança Social (TSU) sobre tudo o que sejam retribuições, incluindo remunerações de férias não gozadas e respetivos subsídios, e, por outro lado, no tocante à parcela paga a título de indemnização pela cessação do mandato de gestor, e visto que a TAP tem averbado prejuízos, ela terá de, nos termos da lei, pagar tributação autónoma sobre o dito valor indemnizatório, no astronómico montante de 45% do mesmo. Em suma, mais de 200.000€ de encargos de tributação, sem que a mesma TAP, a sua administração, os seus consultores e a sua tutela digam uma palavra sobre esse acrescido escândalo!

É, pois, preciso ter muita imaginação e, mais do que isso, um enorme desplante para engendrar uma “explicação” como a apresentada pela TAP ao governo que, afinal, escamoteia todos estes pontos e nada esclarece do essencial: quem impôs a saída da senhora e porquê, como se justifica afinal a dita “compensação”, porque se mentiu à CMVM e à Empresa sobre a verdadeira causa da cessação do mandato e quanto é que tudo isto custa à Empresa?

Finalmente, António Costa, fiel ao seu método sumamente oportunista de defender até aos limites do totalmente indefensável os seus próximos (de Eduardo Cabrita a Miguel Alves, por exemplo) e depois “largá-los da mão” como se nada tivesse a ver com eles ou com a respetiva escolha para governantes, já mandou Medina ordenar à senhora que se demitisse. E agora, já livre desse incómodo “lastro”, Costa vai seguramente passar a dizer que a questão já faz parte do passado, que já comunicou às entidades competentes e agora há que aguardar os resultados e que agora tem é de se concentrar no essencial, que são os problemas do País…

A verdade é que toda esta questão não é essencialmente jurídica (embora, e como se viu, também o seja…), mas sim ética e política, e sob este ponto de vista ela é mesmo um nojo absoluto, que em qualquer país minimamente acordado (já nem digo civilizado…) deveria ter conduzido à demissão dos dois ministros da tutela, senão mesmo do próprio Primeiro-Ministro, como responsável máximo de um Governo que assim atua.

Na verdade, se Alexandra Reis renunciou para se dedicar a um novo projeto profissional, tal como foi então formalmente comunicado pela CEO da TAP, a que título lhe foi então paga uma compensação, e ainda por cima de tão elevado valor, e a que título é que ela até se atreveu – é o termo apropriado – a querer receber milhão e meio de euros? Mas, se afinal foi mesmo obrigada a sair, e se o fossem fundamento, por responsabilidade e “birra” da CEO, isso é admissível, ou antes constitui um ato de autêntica gestão danosa da Madame Christine, fazendo a empresa suportar escusadamente um custo elevadíssimo? Ou, enfim, se foi um afastamento devidamente fundamentado, a que título se lhe pagou o valor em causa e se não servia para administrar a TAP, como e porquê passou a servir para gerir a NAV e, logo depois, para integrar o Governo?

Tendo também presentes as mais elementares regras da experiência comum de vida, alguém pode acreditar que tudo isto se passou à revelia dos ministros da tutela e que, mesmo a posteriori, estes não se interessaram por saber o que se passara? Ou é uma vez mais a postura arrogante e de impunidade, sempre garantida por Pedro Nuno Santos, da CEO da TAP, que justifica toda esta nauseabunda trapalhada (disfarçar uma demissão com uma, remunerada e bem, “renúncia”, tudo sob a proteção do secretismo habitualmente praticado com os acordos negociados com “filhos” gestores de topo, como os de Abílio Martins, Pedro Ramos e João Falcato, por exemplo)?

É, aliás, cada vez mais chocantemente evidente, e de uma arrogância crescente, a duplicidade de critérios e de condições praticadas na TAP para a generalidade dos trabalhadores da empresa (a quem se despede com indemnizações reduzidas e repartidas por 2 anos, ou se continua a exigir mais e mais sacrifícios e a impor ritmos e condições de trabalho cada vez mais penosos, a cortar salários, a querer retirar direitos e a destruir o que resta da contratação coletiva) e para os administradores e quadros de topo seus amigos (cujos escandalosos montantes salariais ou de indemnizações são atribuídos sem limites e logo criteriosamente escondidos com a já referida capa das “cláusulas de confidencialidade”)

É assim para mim absolutamente óbvio que:

1º Alexandra Reis rigorosamente nada deveria receber a título da citada “compensação” (devendo mesmo ser intimada a devolvê-la, e de imediato).

2º Deveria ser muito claro o destino de Madame Christine: tendo sido uma das responsáveis pela situação e havendo uma vez mais faltado à verdade, e ainda por cima depois de todas as demais situações obscuras em que tem estado envolvida – desde a da contratação de gestores de topo para a TAP, milionariamente pagos, à da renovação da frota automóvel (só a dos mesmos gestores de topo, claro…), passando pela do negócio da mudança de instalações, tudo sempre envolvido na maior das opacidades –, a CEO deveria ser de imediato demitida,  com mais que justa causa!

3º Idênticos caminhos deveriam seguir os dois ministros da tutela: ou sabiam o que se passava e não só foram criminosamente cúmplices com tudo isso como até deram consciente e intencionalmente a Alexandra Reis os “prémios” da Presidência da NAV e do cargo governamental, ou não sabiam, e sendo absolutamente claro que deveriam saber, a sua gritante incompetência e irresponsabilidade são igualmente criminosas.

4º Estando em causa uma empresa do sector empresarial do Estado e a enorme massa de dinheiros públicos nela investidos, os basilares princípios da transparência, da fiscalização e do estrito controlo na respetiva aplicação, impostos por disposição imperativa da lei que não pode ser afastada por despacho ou cláusula contratual alguma, deve-se impor a realização imediata de uma rigorosa auditoria a todos os contratos, acordos e compromissos (de trabalho, de prestação de serviços, ACMI, leasing, renting, etc.) celebrados, pelo menos nos últimos 5 anos, por cada uma das empresas do grupo TAP, com divulgação do respetivo teor, da sua justificação e da indicação discriminada dos custos que cada um deles representa para a empresa. 

Essa seria, de facto, a única forma de avaliar de forma precisa, correta e objetiva o que tem sido verdadeiramente a gestão da administração da TAP e a ação da tutela governamental! E de combater com determinação a mais que justificada náusea que todas estas manobras suscitam em toda a pessoa de bem! 

António Garcia Pereira

* Texto corrigido por mim

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